terça-feira, 4 de junho de 2013

As várias versões para um mesmo fato



O repórter de três cabeças
Por José Castello
Texto originalmente publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" em 05 de agosto de 1997.

Tenho 20 anos e acabo de me tornar repórter policial. O chefe de redação, Sr. Azevedo, me convoca para minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente.
O assassino, com braços e tórax derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público, mas não corre risco de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto.
Vou primeiro ao morro. É um crime pequeno, um episódio na vida de gente comum. No barraco, encontro apenas um velho fotógrafo de A Notícia que - com a frieza de um açougueiro experiente - escolhe as imagens mais repugnantes.
"Meu marido é um cachorro", a mulher grita. "Um bicho." Olho o corpo do rapaz, lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o rosto borrado por placas roxas. "Ele matou meu filho por nada", a mulher continua. "Matou como se fosse um rato."
Encho-me de ódio. Ao chegar ao hospital para ouvir o assassino, pois as normas do jornalismo exigem sempre os dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em uma enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem.
"Por que o Sr. fez isso?, pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como pérolas sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não pára de tremer. Insisto: "Por quê?" Ele me olha e diz: "Ele me odiava porque eu sou só um lixeiro." Ergo a voz e, em tom de reprimenda, digo que isso não é motivo suficiente para matar.
O homem suspira. Depois diz: "Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo, ia para a cama com minha mulher." Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o teto da enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada. Saio.
Na redação, o Sr. Azevedo ordena: "Quero uma história violenta, que tenha início, meio e fim, pois precisamos de manchetes”.
Sento-me para escrever. O esquema clássico do noticiário policial me pede uma narrativa reta, em que haja uma vítima, um assassino monstruoso e uma viúva infeliz. Começo a escrever, mas não posso avançar. Sinto- me tonto. Vou ao banheiro e vomito.
De volta, escrevo uma primeira versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os vários pontos de vista se entrelaçam. Ofereço-a ao sr. Azevedo. Ele lê e diz: "O que é isso, um boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório."
Volto para a máquina e escrevo, agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter que tivesse três cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo filho pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai e filho são inocentes, fantoches nas mãos de uma megera.
As três narrativas não cabem em uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção contraditória das três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que menos importa a meu chefe.
O sr. Azevedo, com o ar agastado, vem me cobrar a reportagem. "Nossa hora estourou", grita. Fecho os olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o resultado, entrego-a. O sr. Azevedo lê e diz: "Agora sim a história faz sentido."
Tomo o ônibus para casa. Levo no bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo pela janela. Deixo que o vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigando-me. Tento respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse o peito. Não tenho coragem de ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei qual de minhas três versões foi publicada.

 Trabalho com a leitura e escrita

Com a leitura desse texto podemos abordar o trabalho de um  jornalista e como é difícil relatar um fato, pois o mesmo acontecimento pode ter várias versões dependendo de quem  o conta.
Assim, podemos trabalhar os diversos pontos de vista baseado num fato jornalístico atual, para isso podemos dividir a sala em grupos e cada grupo irá representar uma pessoa envolvida na noticia, contando a sua versão do fato para os outros grupos, no final da discussão cada grupo irá redigir a melhor versão do fato de uma forma colaborativa.

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