O
repórter de três cabeças
Por José Castello
Por José Castello
Texto originalmente
publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" em 05 de agosto de 1997.
Tenho 20 anos e acabo de me
tornar repórter policial. O chefe de redação, Sr. Azevedo, me convoca para
minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um
homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente.
O assassino, com braços e tórax
derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público, mas não corre risco
de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto.
Vou primeiro ao morro. É um crime
pequeno, um episódio na vida de gente comum. No barraco, encontro apenas um
velho fotógrafo de A Notícia que - com a frieza de um açougueiro experiente -
escolhe as imagens mais repugnantes.
"Meu marido é um
cachorro", a mulher grita. "Um bicho." Olho o corpo do rapaz,
lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o
rosto borrado por placas roxas. "Ele matou meu filho por nada", a
mulher continua. "Matou como se fosse um rato."
Encho-me de ódio. Ao chegar ao
hospital para ouvir o assassino, pois as normas do jornalismo exigem sempre os
dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em uma
enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem.
"Por que o Sr. fez isso?,
pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como pérolas
sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não pára de tremer. Insisto:
"Por quê?" Ele me olha e diz: "Ele me odiava porque eu sou só um
lixeiro." Ergo a voz e, em tom de reprimenda, digo que isso não é motivo
suficiente para matar.
O homem suspira. Depois diz:
"Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo, ia para a cama
com minha mulher." Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o
teto da enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada.
Saio.
Na redação, o Sr. Azevedo ordena:
"Quero uma história violenta, que tenha início, meio e fim, pois
precisamos de manchetes”.
Sento-me para escrever. O esquema
clássico do noticiário policial me pede uma narrativa reta, em que haja uma
vítima, um assassino monstruoso e uma viúva infeliz. Começo a escrever, mas não
posso avançar. Sinto- me tonto. Vou ao banheiro e vomito.
De volta, escrevo uma primeira
versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os vários pontos de vista se
entrelaçam. Ofereço-a ao sr. Azevedo. Ele lê e diz: "O que é isso, um
boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório."
Volto para a máquina e escrevo,
agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter que tivesse três
cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho
ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo
filho pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai
e filho são inocentes, fantoches nas mãos de uma megera.
As três narrativas não cabem em
uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção contraditória das
três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que
menos importa a meu chefe.
O sr. Azevedo, com o ar agastado,
vem me cobrar a reportagem. "Nossa hora estourou", grita. Fecho os
olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o
resultado, entrego-a. O sr. Azevedo lê e diz: "Agora sim a história faz
sentido."
Tomo o ônibus para casa. Levo no
bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo pela janela. Deixo que o
vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigando-me. Tento
respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse
o peito. Não tenho coragem de ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei
qual de minhas três versões foi publicada.
Trabalho com a leitura e escrita
Com a leitura desse texto podemos abordar o trabalho de um jornalista e como é difícil relatar um fato, pois o mesmo acontecimento pode ter várias versões dependendo de quem o conta.
Assim, podemos trabalhar os diversos pontos de vista baseado num fato jornalístico atual, para isso podemos dividir a sala em grupos e cada grupo irá representar uma pessoa envolvida na noticia, contando a sua versão do fato para os outros grupos, no final da discussão cada grupo irá redigir a melhor versão do fato de uma forma colaborativa.
Excelente sugestão de trabalho !!!
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